Pular navegação

2º Salão de Nacional de Pequenos Formatos de Britânia

Eu, comigo.

E se algum dia se chegasse a comprovar que nós – os eternos penitentes do futuro - tenhamos vivido no melhor dos tempos possíveis! Assim refletia Elías Canetti, um dos escritores mais sólidos da Europa.

Os grandes pensadores que falam ao futuro determinam o pulso dos tempos que estão por vir. Ah, e os artistas, esses que vivem e criam desde o hoje mais íntimo, o hoje mais secreto que todos temos. E nos revelam, com a imanência que nos dá a imagem, sem ferir, e direto a este outro lugar que não é o racional Neste aventurado modo de leitura do salão, quisemos nos assegurar de fazer confluir em um mesmo espaço simbólico as 11 obras dos participantes.

Surpreende-nos o terníssimo “O Presépio”, do artista Guará. Uma espécie de presépio aiku. A simplicidade das formas, para chegar ao mínimo. Um nascimento parado sobre a estrela cadente. A contratempo, invocando em julho a alegria de dezembro. Não há prosopopeia neste objeto, nem nada de didático a seu favor. Só recordar, para voltar a passar pelo coração.

E assim nos encontramos de repente com a obra “O Primeiro Pedaço é da Minha Avó”, do artista Mulambo. Nos visita novamente a memória festiva do lar. A imagem não necessita figuração, o prato de vidro enfatiza a pintura abstrata, que vamos desembaraçando na medida que nos evoca a mesma fotografia do álbum de família que a todos nós pertence. Mulambo restitui e nos mostra a infância de todos.

Detalhes da obra

E nesta mesma memória teimosa destes tempos pandêmicos, aparecem as estampinhas de Danielle Fonseca, “Sabe, eu já estive no mar antes”. Um selo postal que envia a carta a seu destino; que não vai chegar nunca. O fóssil que encerra em si mesmo a mensagem da natureza, em palavras claras, para todos que estiverem atentos. O trabalho feito em série é o ponto chave da obra. Uma mensagem enviada mil vezes, e que hoje, todos lemos com emergência e surpresa.

É preciso falar de "Deitada", de Efe Godoy. Tudo o que devemos atender nesta quarentena está lá. Godoy não dá trégua ao observador, não permite maquiagem, nem cenografia, nem bastidores. Seu reflexo é cirúrgico, preciso. Não se deixe enganar pelo suposto descaso e pobreza de elementos, “Deitada” é uma obra que já tem seu lugar na história.

Numa estética semelhante, Benedito Ferreira faz uso do caderno de artista, do diário e das cartas escritas de próprio punho, numa grafia bela e descontrolada, onde a palavra é linha, mancha, gesto e poesia. Shakespeare dizia que o humano só tem dois tópicos de conversa, amor e morte. “Perdi o meu amor em Britânia” nos fala de ambos: do amor e do luto.

Ferreira nos incita à curiosidade de um vouyeur. Formamos o trio em uma história de amor perdida. Confirmamos dados análogos, rastros de lágrimas, feridas literárias de punhais penetrantes e aquele espelho que sempre nos reflete.

Perdi meu amor em Britânia | papel #68

Técnica mista sobre papel de carta e plástico

, 2020. 14 x 20 cm

papel #02

Técnica mista sobre papel de carta e plástico

, 2018. 16 x 20 cm

papel #08

Técnica mista sobre papel de carta e plástico

, 2018. 15 x 20 cm

E voltamos ao coração, à sístole e à diástole que simbolicamente abriga todos os sentimentos. Trata-se de um novíssimo e aparentemente frio coração quadrado. Eduardo Zmievski não faz concessões com música, não permite açúcar, nem Valium e nem placebos. Apenas ressoa diante de nossos olhos, compassado com o nosso, o mesmo batimento cardíaco. O mesmo senso incomum de inexistência humana em face do avanço desequilibrado da tecnologia.

É um sangramento que são, coração, são, são coração.

E vem o vermelho que inunda tudo, e nunca fica em nós.

A obra de Estêvão Parreiras salpica tudo o quanto somos com um carmesim incandescente. Como no “Perro Hundido” de Goya, ele aproveita o espaço para carregar o conteúdo apenas na parte inferior do papel. Cria uma grande tensão visual, entre o silêncio do vermelho, a figura mumificada e desenhada com arranhões, e os seis elementos flutuantes, que parecem horas, minutos, segundos, dentes ou ovelhas contadas para dormir.

Iris Helena aponta-nos para o canto fantasmagórico, que não sabemos se ainda está lá, ou se é um produto da imaginação. O negócio fechado, sem transeuntes, como descreve o escritor venezuelano Miguel Otero Silva, em seu romance Casas Muertas.

E nos perguntamos a partir da obra “Esquina”: uma cidade pode continuar a parecer uma cidade, sem habitantes? A obra de Iris Helena não é uma paisagem, é um amuleto para voltar a habitar.

A imagem fotográfica está impressa sobre um fragmento da casca de uma parede partida ao meio, vemos sobre ele a imagem de uma construção de esquina, um estabelecimento comercial como um mercadinho, vemos a calçada e as laterais do estabelecimento, na fachada da construção pode se ler a palavra: sonho.
Detalhes da obra

Na mesma reflexão angustiada, duas paisagens desoladas são introduzidas na mostra. Novamente, o crepitar do humano é inexistente. São duas pinturas da série "Minutos antes do fim" de Henrique Detomi. O título já contém em si o conceito de ambas as obras.

Sem título

Pintura óleo sobre madeira preparada com bolo armênio

, 2020. 9,5 x 11 x 2 cm

Sem título

Pintura óleo sobre madeira preparada com bolo armênio

, 2020. 15 x 10 x 5 cm

Outra paisagem não menos perturbadora é o vídeo “Qualquer direção” fora do centro, de Rafael Salim. No início, o passeio nos acalma. Lembramos o cheiro da floresta tropical com chuva. Mas esse cavar com as mãos nos sacode sinistramente e retarda qualquer impulso romântico de voltar à natureza, em resposta a pouca certeza da cidade.

Vemos de dentro de uma floresta a partes da cidade do lado de fora; um homem de cabelos volumosos aparece dentro da floresta de costas vestido roupas pretas; sua imagem se dissolve e desaparece, vemos suas mãos cavando um buraco no chão, ao fim aparece um cutia (animal) e o vídeo acaba.

Analogicamente, Marú nos dá um aforismo. “Arquitetura não enfrenta outra coisa a mais do que o despertar de fantasmas”. Novamente, a evocação da morte.

Encontramos um projeto de edificação funerária. E lembramos Loos, que sublinhava que a única edificação que pertence à categoria de arte é o monumento e a tumba. A casa - como o resto da arquitetura - não deve ser considerada arte, pois tem a impressão da utilidade.

Marú nos mostra um projeto de arquitetura que só serve para simbolizar, versus a casa que serve de máquina para habitar. Hoje, em quarentena, quando o mundo está suspenso, talvez a casa também se transforme em mausoléu.